Médico recorda em BD experiência "entre cadáveres" na pandemia
- 06/10/2025
Num registo entre a ficção e o real, Luís Moreira Gonçalves, auxiliado nos desenhos pelo autor brasileiro Felipe Parucci, descreve como foi viver e trabalhar durante três meses num hospital na Rondônia, na floresta amazónica, para responder à emergência da covid-19.
Luís Moreira Gonçalves vive no Brasil desde 2017 e trabalhava como investigador na Universidade de São Paulo, quando foi contactado pelo governo do Estado da Rondônia para o combate à pandemia, por falta extrema de profissionais de saúde.
Sem experiência clínica na altura, o médico português foi "uma testemunha quase acidental (...) num dos lugares mais importantes, num dos eventos mais importantes dos últimos anos" no Brasil, como contou em entrevista à agência Lusa, a partir de São Paulo.
Por tudo o que assistiu, o médico entendeu que "tinha o dever de escrever" e de partilhar esses "meses de inferno".
"Esse é o motivo altruísta. O motivo egoísta foi que me fez bem. Eu saí de lá, não vou dizer traumatizado, se calhar com stress pós traumático, e escrever algo sobre o assunto ajudou-me bastante", admitiu.
Ao longo de mais de trezentas páginas, o médico relata a angústia dos primeiros procedimentos médicos feitos a pacientes com covid-19, as reanimações, os entubamentos, menciona a escassez de profissionais e de material médico, as inúmeras declarações de óbito, a relação com os familiares das vítimas mortais.
À Lusa, Luís Moreira Gonçalves lembra ainda as mensagens de despedida de alguns pacientes antes de serem entubados, sabendo que a taxa de sobrevivência era mínima. A última coisa que muitos lhe diziam era um pedido para serem salvos.
"Foi extremamente pesado. Como é que se fazem essas tomadas de decisões, decidir quem vai viver e quem vai morrer. Eu tive uns meses de inferno e eu acho que ninguém tinha bem noção do que aconteceu. Espero que seja bom para os profissionais relembrarem, fazerem um pouco uma mini-catarse", disse Luís Moreira Gonçalves.
No posfácio a esta banda desenhada, o médico português presta homenagem "a todos os que estiveram na linha da frente, em particular aos mais mal pagos e que arriscaram as suas vidas e as dos seus familiares".
'Dormindo entre cadáveres', que foi editado no Brasil no verão e chega este mês a Portugal, "não é um relato jornalístico, não é um diário de guerra", mas inspira-se em histórias reais e em pessoas que conheceu naqueles meses.
Por isso, "tudo neste livro é falso e tudo neste livro é verdadeiro", incluindo uma das situações desenhadas, em que Luís Moreira Gonçalves conseguiu adormecer, e sem pesadelos, entre vítimas mortais da covid-19, embrulhadas em sacos pretos, na morgue.
Sobre este livro, Luís Moreira Gonçalves diz que cabe aos leitores fazer uma reflexão da pandemia de covid-19, sobre os sistemas de saúde e sobre o que mudou, ou não mudou, na sociedade.
"Ainda não se fez uma discussão, nem sei quando é que será feita, sobre o que correu bem e mal. Aqui no Brasil há uma ideia punitiva do que aconteceu. Acho que seria muito mais útil não sermos punitivos, mas aprendermos. As pessoas tiveram muitas epifanias, mas não mudámos nada por aí além", lamentou.
Luís Moreira Gonçalves tem 40 anos e é natural da Trofa (Porto), e sempre quis ser cientista, trabalhar em investigação. É formado em Medicina e Química, ingressou na Universidade de São Paulo, onde já tinha iniciado um grupo de investigação, mas acabou por sair na sequência da requisição médica durante a covid-19.
Depois de exercer na Rondônia, trabalhou em Pernambuco, na Bahia e no interior do estado de São Paulo. Decidiu enveredar pela Psiquiatria, que exerce atualmente, mas não fechou todos os caminhos do percurso profissional, incluindo um possível regresso a Portugal.
'Dormindo entre cadáveres', de Luís Moreira Gonçalves e Felipe Parucci, é a primeira banda desenhada publicada pela Zigurate.
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