Juan Carlos, de escudo protetor da democracia à simpatia por Franco
- 20/11/2025
"Penso que ninguém nega o papel positivo de Juan Carlos I na transição [da ditadura para a democracia]. E ao mesmo tempo penso que ninguém, da esquerda à direita, nega que caiu em desgraça depois", disse à Lusa o politólogo espanhol Javier Carbonell, investigador na Universidade de Edimburgo e professor na Sciences Po de Paris.
Após mais de uma década de polémicas em torno da origem da fortuna pessoal, de suspeitas de crimes fiscais, de episódios da vida privada e de um auto-exílio, desde 2020, financiado pelos Emirados Árabes Unidos, a figura de Juan Carlos I "não está reabilitada e não estará para já", acrescentou Javier Carbonell.
O papel que teve na democratização de Espanha não supera ou compensa neste momento o lado dos escândalos dos anos mais recentes, mas "no futuro" não será assim, "seguramente", considerou o politólogo.
Juan Carlos de Borbón, nascido em Roma em 1938, foi proclamado rei de Espanha em 22 de novembro de 1975, dois dias após a morte do ditador Francisco Franco e por decisão do próprio 'caudilho', que o tinha escolhido formalmente para sucessor em 1969.
Depois de ter recebido todos os poderes absolutos que tinha o ditador, Juan Carlos de Borbón acabou por ser um dos protagonistas da transição espanhola, que levou à instauração do atual regime democrático, uma monarquia parlamentar constitucional, como estabeleceu a Constituição de 1978, em que o chefe de Estado, o Rei, tem poderes muito limitados.
O papel positivo de Juan Carlos I neste período é consensualmente aceite em Espanha, embora haja diferentes avaliações sobre o grau de relevância do monarca.
Há quem o considere "o motor" do processo de democratização, quem diga que foi mais "um escudo protetor" da democracia, quem sublinhe que foi apenas mais um entre vários que possibilitaram a transição espanhola ou ainda quem insista em que soube interpretar e ler o momento político e social do país e da Europa e percebeu que este era o único caminho possível para Espanha e para a sobrevivência como chefe de Estado e a da monarquia espanhola.
Um dos episódios mais relevantes e determinantes para a popularidade de Juan Carlos I e o reconhecimento que teve como salvador e garante da democracia ocorreu com a tentativa de golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981, quando o governo espanhol e todos os deputados foram sequestrados no parlamento.
Para o falhanço do golpe foi considerado determinante o curto discurso que o monarca fez pela televisão durante a madrugada, em que defendeu a ordem constitucional e a democracia.
O 23-F (como é conhecida em Espanha a tentativa de golpe de 1981) transformou Juan Carlos I num dos heróis da transição espanhola, embora em anos recentes tenha sido questionado o verdadeiro papel neste episódio por diversos protagonistas, com parte dos golpistas a assegurarem que atuaram em nome do monarca.
O rei emérito deu pela primeira vez publicamente a própria versão do 23-F num livro de memórias que publicou há poucas semanas, no qual garantiu ter sido traído pelo general Alfonso Armada, que havia sido seu tutor e chefe da Casa Real.
"Alfonso Armada esteve ao meu lado 17 anos. Gostava muito dele e traiu-me. Convenceu os generais de que estava a falar em meu nome", relatou.
O livro de memórias que acaba de publicar ("Reconciliação", escrito com a autora francesa Laurence Debray), é precisamente o mais recente capítulo das sucessivas polémicas em que Juan Carlos I mergulhou há mais de uma década e que mancharam a sua reputação.
Além de ter escolhido publicar as memórias -- algo muito raro num monarca ou ex-monarca -- num momento em que Espanha celebra 50 anos do fim da ditadura e da própria coroação, Juan Carlos I manifesta no livro simpatia e até admiração por Franco, com quem disse ter tido "relações pessoais e frequentes".
"Respeitava-o enormemente, apreciava a sua inteligência e o seu sentido político. (...) Nunca deixei que ninguém o criticasse à minha frente", admitiu Juan Carlos I em "Reconciliação".
"Nada o pôde destruir, nem sequer desestabilizar, o que, num período tão longo, supõe um grande desafio", disse ainda sobre o ditador.
Juan Carlos de Borbón garantiu que na última conversa com Franco este lhe disse: "Alteza, só lhe peço uma coisa: mantenha a unidade do país".
"Essa foi a sua última vontade. Não me pediu que preservasse o regime (...). Portanto, tinha as mãos livres para iniciar reformas desde que a unidade de Espanha não fosse posta em causa. Tive a impressão de que me dava liberdade de atuar", acrescentou.
Numa entrevista ao jornal francês Le Fígaro disse mesmo que Franco o fez rei "para criar um regime mais aberto".
No livro, Juan Carlos de Borbón reivindicou o papel que teve na transição para a democracia e manifestou amargura com o país e em relação ao filho, Felipe VI, atual Rei de Espanha, de quem diz que lhe "virou as costas por dever" e, embora entenda que tenha de manter "uma posição pública firme", lhe custa "vê-lo tão insensível".
"Felipe VI está já há muitos anos a fazer um esforço muito grande para se distanciar do pai e o que faz e fizer neste momento Juan Carlos I afeta bastante menos a monarquia do que possa parecer", considerou Carbonell, para quem, "em geral", os espanhóis "não esperam agora nem nada de bom nem de mal" do rei emérito.
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