Ex-ministra Van Dunem defende autonomização da Reinserção Social
- 06/10/2025
"Estou convencida de que a reforma feita em 2012 e que integrou na mesma direção-geral a reinserção social e os [serviços] prisionais - ou seja, a componente de reinserção e a componente de segurança - acabou por debilitar a componente de reinserção", afirmou a jurista num painel de debate no âmbito da conferência "Práticas Artísticas em Contexto Prisional", a decorrer hoje na sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Francisca Van Dunem admitiu que, "num ambiente em que os meios financeiros são escassos há, do ponto de vista político, a tendência para uma orientação para áreas mais críticas na perspetiva politica e na perspetiva comunicacional", em detrimento de outras, dando como exemplo o "efeito extraordinário" que têm um motim numa prisão ou uma greve de guardas prisionais.
Algo que faz com que o financiamento acabe por ser canalizado para a área prisional. Por isso, "voltar a separar a reinserção social dos [serviços] prisionais seria importante".
Enquanto ministra, embora não tenha conseguido acompanhar 'in loco' a transformação de participantes em projetos artísticos desenvolvidos em prisões, partilhou que conseguiu perceber "o potencial transformador do projeto Ópera na Prisão em jovens do estabelecimento prisional de Leiria", com quem conversou nos bastidores da Gulbenkian, aquando da apresentação final do projeto no palco do Grande Auditório daquela instituição.
No âmbito das práticas artísticas em contexto prisional, Francisca Van Dunem referiu haver países, "pelo menos um", onde, "partindo do princípio que a arte tem uma função terapêutica nas prisões", foi criado uma espécie de um instituto, que integra profissionais das áreas da Justiça, Cultura e outras, "que fazem a conceção de tudo aquilo que pode ser a atividade artística em contexto prisional".
"O Estado, o sistema prisional, nunca terá capacidade para financiar estes programas. Vai ter sempre de haver parcerias. Um instituto deste tipo tem a virtude de ser capaz e estar vocacionado de identificar as parcerias que considera mais virtuosas e mais adequadas, e depois fazer a interação com os agentes e as associações para fazer essas parcerias", disse.
No mesmo painel, o diretor do Estabelecimento Prisional (EP) da Guarda, Luís Vaz Couto, atestou o "contributo para a mudança comportamental" dos reclusos que têm os projetos artísticos que têm sido desenvolvidos nos últimos 30 anos naquela prisão.
De modo a atestar a ideia que havia, mas não estava ainda avaliada do ponto de vista cientifico, o EP da Guarda convidou uma universidade para avaliar o impacto dos projetos nos reclusos e o resultado foi "francamente positivo".
Segundo Luís Vaz Couto naquela prisão está terminar agora um projeto, outro a começar e mais dois em desenvolvimento, todos de reinserção social pela arte.
"Continuamos a achar muito importante acolhermos projetos artísticos, sejam de dança, teatro, música. Sabemos que o objeto final [apresentações no Teatro Municipal da Guarda, por exemplo] é tão ou mais importante para quem participa, mas para nós, instituição, é o processo, porque é no processo que se faz a aprendizagem, a evolução", referiu.
Continuar a desenvolver estes projetos de forma sustentável é, para este responsável, "o maior desafio para o futuro".
O apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, através do programa PARTIS e, desde 2020, PARTIS & Art for a Change, em parceria com a espanhola Fundação "la Caixa", tem permitido o desenvolvimento de alguns desses projetos.
E "o apoio financeiro é importantíssimo", salientou Luís Vaz Couto, a quem "pouco importa quem financia".
"Mas temos que ter alguém que suporte tudo isto. É Orçamento do Estado? É privado que seja mecenas? Temos que ter alguém que suporte um trabalho bem feito, porque não queremos trabalho por ter. Algo que possamos dar, oferecer, à população reclusa que nos é confiada pelos tribunais", referiu.
Para a antiga ministra Francisca Van Dunem é necessário "encarar o problema grave de subfinanciamento do sistema prisional", algo que "vai agravar-se com o tempo".
No que diz respeito à realização de atividades socioculturais na prisão, a perceção de Francisca Van Dunem tem é que "as parcerias vivem muito de quem está à cabeça do ministério da Justiça, do diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, mas sobretudo dos diretores das prisões".
Luís Vaz Couto referiu também que "o voluntarismo é muito importante", dos artistas, mas também de quem trabalha nas prisões, lembrando que "o sistema vive há muitos anos de pessoas com boa vontade de querer fazer, de querer melhorar".
No mesmo painel, a mediadora cultural e artística Catarina Claro, diretora executiva do projeto multidisciplinar Trégua, partilhou a experiência que tem tido ao longo dos últimos quatro anos na prisão do Funchal.
Catarina Claro partilhou que, ao longo do tempo, foram notando, por exemplo, mudanças no autocuidado dos reclusos, "cuidados de higiene, alterações na toma de medicação", mas também nos guardas prisionais, que se foram envolvendo mais, dando sugestões de outros projetos, por exemplo.
"Ao fim de alguns anos sentimos um impacto no ecossistema como um todo", disse.
O encontro "Práticas Artísticas em Contexto Prisional" serve para "refletir sobre o papel dos projetos artísticos em estabelecimentos prisionais", segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, que promove a iniciativa juntamente com a Acesso Cultura.
Os vários painéis incluem artistas, responsáveis por instituições prisionais, juristas, investigadores e participantes em projetos artísticos, "com o objetivo de cruzar experiências, discutir desafios e partilhar aprendizagens sobre práticas artísticas realizadas com pessoas em regime de privação de liberdade".
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